julho 26, 2024

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain


Com um pulinho pelos anos 70 e 80 e seguindo direto para os anos 2000, passeando pelas ruas de Paris, acompanhamos a história de Amélie Poulain: uma infância que constrói sua personalidade; um início de vida adulta dando passos rumo a um caminho próprio (mais distante das influências da família, explorando mais do mundo sozinha); e um, pode-se dizer, "retorno de Saturno" gerando renovação e amadurecimento. Sim, O fabuloso destino de Amélie Poulain é um filme muito astrológico, isso não é focado nem explicitado durante a obra, mas para quem gosta do assunto é um ponto interessante de observar. Um site até fez uma análise nesse sentido que achei bem legal.

Tanto Jean-Pierre Jeunet, o diretor da obra, quanto a personagem principal são nascidos em 3 de setembro, regidos por virgem, estrategistas e apaixonados por minuciosidades. O próprio diretor já comentou que se não for assim, com paixão a cada detalhe, ele não faz suas histórias. E O fabuloso destino de Amélie Poulain mostra isso muito bem. Apesar de ter sido um filme pequeno, não muito caro, foi uma obra muito pessoal, na qual se percebe sua dedicação e seu brilhantismo.

A película já começa nos dizendo a data e o horário exatos em que Amélie nasceu, logo após detalhar fatos aparentemente aleatórios e insignificantes, mas grandiosos em suas simplicidades (quantos batimentos de asa por minuto uma mosca é capaz de dar e quão ínfima ao mesmo tempo é sua vida; como diabos aqueles copos não caíram da mesa?! E por aí vai), lembrando quão incrível e fascinante pode ser a beleza de ver e viver o mundo se estivermos abertos a perceber isso de forma atenta. Exatidão e especificidade, detalhes, as pequenas coisas da vida, da rotina, do dia a dia, são adorados durante toda a obra.


Cada personagem, por exemplo, é apresentado com o narrador descrevendo o que eles não gostam e o que gostam de fazer, situações simples do cotidiano, reais e palpáveis, aparentemente supérfluas e pequenas demais para serem importantes, mas verdadeiras. Incrivelmente, às vezes mais impactantes no sentir de cada indivíduo do que as grandes questões da humanidade. Porque sentir é vivência, experiência marcada no ser, envolve tato, paladar, olfato, afeto, audição, visão... É um fato, pega diretamente na gente. Lembro muito da música Oásis de Potyguara Bardo, na qual vemos o trecho "Cê tem noção que consegue me afetar mais do que a situação da política brasileira?". Claro que a política brasileira nos afeta, por exemplo, mas sem uma disciplina e visão social aguçada, tomados pelas questões com nossas relações ou afazeres de casa/trabalho/estudo (situações as quais estamos mais diretamente conectados), é fácil esquecer de se atentar a isso.

E são nesses pormenores, inclusive, que Amélie foca seus feitos. Sim, assim como Tistu em O menino do dedo verde, nossa personagem aqui também faz grandes feitos. Em uma escala menor, não atingindo instituições ou estruturas sociais como ele, mas focando em pessoa por pessoa. E tudo isso de forma anônima também. A satisfação não é do reconhecimento pelos seus atos, mas simplesmente sentir que fez diferença na vida das pessoas afetadas por eles. E, vale ressaltar, ela faz não apenas boas ações, mas maldosas também. Amélie é uma justiceira hahaha, personalidade extremamente vingativa. Algo que é mostrado e construído para o telespectador desde a infância dela, o que, particularmente, gosto muito. O filme trata o fluxo da vida, como ela se constrói, como somos moldados, como tudo é causa e consequência, de forma muito natural e real, mesmo que haja uma mistura com elementos mais lúdicos e fantasiosos.


As primeiras cenas, principalmente, que nos expõem à infância de Amélie, trazem isso muito bem, gerando um desenvolvimento de personagem e empatia com ela muito interessantes. Entendemos a origem da personagem, como ela foi criada, as situações pelas quais passou e, consequentemente, porque é como é no agora. A frase "Aqui se faz, aqui se paga" é literalmente falada na obra, rapidamente, por um personagem que ajuda Amélie a encontrar o primeiro alvo dos seus grandes simples atos. Tudo na vida é assim, tudo tem uma origem, um desenvolvimento e um estágio mais avançado (ou o fim ou o momento atual). As coisas têm um motivo palpável e real para serem como são. É engraçado, por exemplo, como a resolução de um dos grandes mistérios da obra (a foto de um rapaz que se repetia nas cabines fotográficas), para o qual os sonhadores do filme criam várias hipóteses, imaginações, atribuem ao sobrenatural, é algo simplesmente... normal! O que não deixou de ser uma revelação incrível, devo dizer.

A obra brinca com isso muito bem, o normal é exaltado o tempo todo de um jeito que chega a parecer extraordinário. E não poderia ser diferente disso, visto que, durante toda a sua vida, a personagem principal encontrou refúgio na imaginação, é algo que faz parte de sua personalidade, é como ela enxerga e vive o mundo. Então, faz tudo como se fosse uma grande missão, um grande propósito, se imagina como uma heroína, em alguns momentos até mesmo aparece vestida com uma roupa que lembra o Zorro, e bola planos e estratégias para cada ato seu. O que, por mais que seja uma forma peculiar de agir (um dos personagens da obra, o homem de vidro, inclusive a julga por isso), é, sim, uma atitude, é um jeito de estar no mundo completamente válido. E não apenas, suas ações realmente acabam fazendo diferença na vida das pessoas ao seu redor, até mesmo na daquele que a julgou.


Tudo isso engatilhado por um pequeno momento ao acaso: o cair de uma tampa de perfume, que bate em um tijolo, mostra que ele estava solto e escondia um tesouro. E, talvez, se não fossem os olhos atentos e curiosos de Amélie (os olhos da atriz Audrey Tautou são realmente grandes e expressivos, o que traz ainda mais carga e caracterização à personagem), não teria filme nenhum, daria um chutinho colocando o tijolo de volta no lugar e vida que segue. Mas não, não só um tesouro é encontrado, como também busca-se ser devolvido ao seu dono. Começando, assim, uma grande jornada tanto de serviço ao próximo, como de autodescoberta e mudança interna.

O maior problema de Amélie se encontra quando ela é chamada para saltar rumo à concretização de vontades dentro da sua própria história. Quando precisa mudar a forma de se relacionar que sempre viveu. Ou seja, sair da sua zona de conforto. Para ela, é mais fácil pôr ordem na vida dos outros, agir de forma anônima, manter certo distanciamento (assim como aprendeu na infância). De tal modo não se expõe, não chega a se vulnerabilizar. Entretanto, quando se trata de sua vida pessoal, não dá para fazer assim e acaba estagnando pelo medo, por não conseguir achar a força necessária (apesar da vontade) para realizar seus desejos. Em nenhum momento, para deixar claro, senti que a personagem deveria mudar o jeito dela, cheio de planos, mistérios e estratégias durante a obra, o tempo todo ela foi ela mesma (e ela mesma é incrível!), mas refleti sobre a necessidade de saber o momento de arriscar, dar passos além do que já é feito, ter a coragem de fazer uma mudança, ter a atenção para cuidar não só dos outros, mas, principalmente, de si, para não acabar perdendo oportunidades e se arrepender depois.

Os feitos nem tão bons assim...

1) Meticulosa, Amélie observa e manipula coisas que fazemos no automático, as quais nos acostumamos e paramos de focar ou nos concentrar para fazê-las (o oposto do que o mindfullness pede para fazermos, basicamente, manter a mente ativamente conectada ao presente), brincando com a cabeça das pessoas. Como você pega na maçaneta da porta? Presta atenção na embalagem da pasta de dente antes de usá-la? Quando você calça uma sandália que usa para ficar em casa, a observa antes? Esse tipo de cena me lembrou muito de um momento em que, por acidente, cortei um dos dedos da mão que uso para escrever, tendo que deixá-lo enfaixado, imobilizá-lo, e da dificuldade que tive para simplesmente segurar um lápis na época. São as pequenas coisas. Daquele tipo que só voltamos a prestar atenção em como podem ser até mesmo difíceis de fazer e valorizamos conseguirmos fazê-las quando nos ferimos, quando dói ou quando falta, por exemplo. Será que precisava chegar a esse ponto para dar mais valor?
2) No decorrer do longa, um casal é formado por meio de uma "fórmula", um joguinho, na verdade, proporcionado por Amélie, e, o melhor, o resultado é ruim! Por mais que inicialmente pareça que vai dar certo, a relação embasada puramente em um jogo e uma tensão sexual, pode-se dizer, criada nem sequer surgida naturalmente, é frágil, não dura, rapidamente começa a mostrar seus problemas.

Uma ode ao audiovisual!

Entre uma das coisas que Amélie faz, está a gravação de fitas com várias cenas que passam na sua TV para entregar ao homem de vidro. Ela usa do audiovisual para ajudá-lo a sair de si, ver o mundo externo, histórias e pessoas diferentes nas quais se inspirar ou com quem se identificar. É uma cena linda e vemos que, no final, tem um efeito sobre o personagem, o estimula a fazer coisas diferentes, sair da mesmice na qual estava preso por tantos anos. Aquele que julgava suas ações, é tocado por uma delas, e então percebe sua importância, o quão atenciosas e compassivas eram no fundo. E por ser o único a saber que era ela a autora de tais atitudes, acaba sendo o único capaz de retribuir, dando o empurrãozinho que Amélie precisava para a mudança em sua própria vida. É um ciclo que se fecha de uma forma incrível.