Alguma vez você já procurou saber a história da sua
família? Quantas vezes já perguntou a algum parente sobre sua vida? O que está
fazendo para manter a memória do seu núcleo viva?
Memória. Em sua definição, a faculdade de conservar
e lembrar de estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado
aos mesmos; um ato de revivescimento. Para muitos, uma forma de nunca deixar
quem já partiu desaparecer completamente, pois é na lembrança que as pessoas
prevalecem vivas, podendo permanecer assim por gerações, caso sejam lembranças
repassadas.
Partindo desse princípio, surgiram os dias de orações para aqueles que se
foram. No Brasil, Dia de Finados; no México, Dia de los Muertos; na Espanha,
Día de Todos los Santos e assim por diante. Até mesmo o Halloween (palavra que
vem de "All Hallow's Eve", "véspera de todos os santos"),
nos Estados Unidos, está atrelado a essa tradição. Todos comemorados entre os
dias 31 de outubro e 02 de novembro, porque acredita-se que há o enfraquecimento
da proteção que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos nesse período.
Como a criatividade é algo que não se priva de
inspirações, nada melhor do que misturar uma cultura já antiga com uma história
atual para brincar com ou mudar nossa perspectiva sobre o que está ao nosso
redor, não é mesmo? Assim faz "Viva - A vida é uma festa", filme da
Pixar dirigido por Lee Unkrich e lançado em 2017 que conta a história de
Miguel, um menino com o sonho de ser músico, mas que, devido à aversão de sua
família à música, causada por traumas passados, não consegue conciliar o amor
por seus parentes com o que ele realmente é. Assim, Miguel embarca em uma
aventura no Dia de los Muertos, na qual conhece mais de si mesmo e da sua
própria história.
Não só o desenvolvimento da obra é muito bem feito,
com início, meio e fim bem casados e uma construção felizarda de cenários e
personagens, trabalhando a morte de forma delicada e natural – conectada com a
vida -, mas também seus detalhes impressionam ao trazerem reflexões importantes
a respeito do feminismo, quando coloca a mulher como figura forte e líder; da
ampliação cultural, ao abordar uma tradição mexicana, longe do contexto
americano; da importância dos animais e da natureza em nossas vidas, que têm
muito a nos ensinar, sendo guias para nós; da ganância e até aonde ela
pode nos levar; além de, principalmente, ser cheia de pontos específicos que trabalham bem o quesito "mudar"/"se
encontrar", com vários simbolismos ao longo da narrativa que a tornam
ainda mais bela e sobre os quais falarei um pouco.
Desvincular-se |
Começamos o filme sabendo que Miguel é um
apaixonado pela música, mas que devido a sua família e aos traumas dela, se
reprime. Isso muito acontece em vários lugares do mundo, na realidade. Não
necessariamente traumas, mas crenças e imposições também são fatores capazes de
causar isso. Daí vem a necessidade de desvincular-se. Desvincular-se de tudo
que conhece para aprender quais são seus reais princípios e não os adquiridos
pelo meio em que viveu. É apenas quando Miguel decide que não quer mais fazer
parte daquilo, que ele começa a jornada em busca dele mesmo, seguindo o que seu
próprio âmago deseja e não a sua família.
Ponte de pétalas laranjas/douradas |
Quando Miguel decide ir em busca de suas próprias
vontades, ele acaba transitando para a realidade dos mortos, mas ainda está em
seu mundo. Para atravessar para o mundo dos que já partiram, ele precisa passar
por uma ponte de pétalas laranjas/douradas. Isso me lembrou muito “O mágico de
Oz” e a estrada de tijolos amarelos. Em ambas as histórias, esses caminhos são
o que levam seus personagens em direção ao autoconhecimento e, por isso, algo
tão belo, simbolizando a busca pelo seu próprio eu.
Mais vivos do que mortos |
Mais uma vez me lembrei de “Oz”, quando percebi
que, em “Viva”, o mundo dos mortos, na verdade, tinha cores muito mais
intensas, vibrantes que o mundo dos vivos, este marcado por cores mais
terrosas. Isso, porque é quando corremos atrás do que realmente
queremos para nossas vidas que nos sentimos mais vivos, é quando sentimos as
emoções de forma mais aflorada, quando passamos a vivenciar as coisas por
inteiro e, portanto, somos nós mesmos.
Em uma caverna de águas cristalinas |
É no momento em que o personagem se encontra em uma
espécie de caverna com águas cristalinas que ele descobre mais sobre si mesmo,
sobre seu passado e sua própria história. Ali, após ser lavado pela água da
caverna, sendo isso uma simbologia de limpeza, de clareza, o menino aprende
sobre a importância da família, sobre valorizar àqueles que fazem parte da sua
história e sobre seus princípios.
Abrir-se para aprender mais |
No final,
Miguel ajuda seus parentes através daquilo que ele é apaixonado: a música.
Nesse momento somos agraciados com muita emoção, pois é o ponto em que a
compreensão e o respeito pela individualidade de cada um passa a existir. A
música não era algo ruim, muito pelo contrário, e é a coragem do menino e sua
força de vontade, não apenas para ser músico em si, mas por fazer isso com um
propósito, que abrem a cabeça dos seus parentes, deixando de lado traumas
repressores. Com isso, ao encararem as novas oportunidades, outras pessoas da
própria família, que poderiam nem saber sobre essa paixão, descobrem gostar da
arte também, o que pode ser visto nas últimas cenas quando todos estão em
festa, dançando, cantando e tocando, demonstrando que é quando nos abrimos às
possibilidades, que mais aprendemos sobre nós mesmos.
A família - e
aqui não necessariamente me refiro à imagem tradicional da mesma - é um dos
bens mais preciosos que temos em nossas vidas. De vez em quando, assim como faz
Miguel em sua jornada, precisamos seguir nossos rumos em direções opostas às
suas imposições ou crenças - pois a nossa liberdade também é algo que
necessitamos cultivar - e, assim, acabamos decepcionando pessoas. Mas, ao haver
o amor sincero, o querer bem acima de qualquer ideia pré-fabricada - citando
genericamente “O menino do dedo verde” -, mesmo que leve um tempo, a família
compreende e respeita às decisões de cada um, porque a felicidade do outro, ao
seguir o que ele quer, está intrínseca à felicidade do todo. Daí, a importância
de valorizar esse núcleo. Seja demonstrando amor no dia a dia, seja conservando
sua memória. E essa mensagem, bom, o filme passa de maneira primorosa.
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